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Conheça a fascinante história das medidas, que acompanham o homem desde o tempo das cavernas.

Texto da Revista Superinteressante, ed. 186, mar. de 2003


Da Pré-História aos dias de hoje, as medidas de espaço, volume e massa foram de tal forma incorporadas às nossas vidas que é impossível imaginar a civilização sem elas. Conheça os bastidores dessa história de erros, acertos e acirradas disputas de poder.

Elas fazem parte da vida cotidiana. Estão na reforma da casa, nas compras do supermercado, na ida ao posto de gasolina. Têm presença garantida nos laboratórios de pesquisa e nas indústrias, e são usadas nas transações comerciais entre os países. Você já não consegue mais conceber o mundo sem considerá-las; basta pensar nos metros, quilos e litros que permeiam as suas atividades mais corriqueiras. Essas personagens tão prestigiosas são as medidas, grandezas de espaço, massa e volume que acompanham a evolução intelectual e tecnológica da humanidade desde a Antigüidade.

As medidas surgiram da necessidade de estabelecer comparações que permitissem o escambo entre as pessoas, quando as primeiras comunidades começaram a dispor de excedente agrícola, alguns milhares de anos antes de Cristo. Era preciso criar um sistema de equivalência entre o produto e um padrão previamente determinado que fosse aceito por todos os membros do grupo. As unidades primitivas tomaram como referência o corpo humano. Palmos, braços e pés ajudavam a dimensionar comprimento e área. Depois, vieram as balanças, as réguas, as ânforas e outras tantas medidas até a criação, em 1960, do sistema internacional de unidades, que estabelece grandezas universais para serem empregadas mundialmente.

Por viver num mundo já metrificado, você talvez ache muito natural — e até óbvio — que as distâncias sejam medidas em quilômetros e o arroz em quilos, por exemplo. Mas poderia ter sido diferente. Se o Brasil e boa parte do mundo não tivessem adotado o metro e as outras unidades exportadas pelo império napoleônico, talvez ainda usássemos o sistema imperial britânico, com suas jardas, onças e galões. E veríamos o mundo de outra maneira.

Conceber grandezas resultou da lenta e gradual sofisticação do pensamento humano, cujos primórdios remetem à Pré-História. “Medir foi uma maneira intuitiva de garantir a sobrevivência”, diz o físico Giorgio Moscati, da Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente do Comitê Internacional de Pesos e Medidas, órgão gestor do sistema internacional de unidades. Há cerca de 30 mil anos, enquanto lascava pedras e manuseava ossos para fabricar instrumentos de caça e de defesa, o homem começou a avaliar dimensões. Comparava as lascas entre si e analisava se eram adequadas para o uso que esperava delas.

Quando caçava, aprendeu — após repetidas tentativas — a calcular a distância do alvo, a força com que deveria atirar a lança e a velocidade que deveria conferir ao arremesso. “Não se trata apenas de um comportamento instintivo”, diz o historiador da ciência Ubiratan D’Ambrosio, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “A capacidade de avaliar dimensões surge de um pensamento abstrato que começa a despontar de modo tênue nesse homem primitivo.”

Aves e mamíferos também estimam distâncias e aprendem a dosar a própria velocidade na hora de conseguir alimento, chegar ao ninho ou fugir de um predador. Mas é a relação entre custo e benefício que está por trás dessas estimativas. “Ao contrário do que acontece nos humanos, não se trata de um processo consciente”, diz o neurofisiologista Gilberto Xavier, da USP. “O sistema nervoso desses animais acumula informações a partir de experiências prévias e gera predições baseadas na memória. As estimativas resultam, então, de um cruzamento de probabilidades.”

Erros e acertos também modelaram a experiência humana. Mas o desenvolvimento da linguagem e, posteriormente, da cultura possibilitou ao homem identificar as diferentes dimensões presentes no ambiente e conferir-lhes um significado. “A vida em sociedade exigiu comunicação”, diz Ubiratan. “A troca de impressões com os demais membros do grupo foi a base para a criação de um padrão comum.” Assim surgiram os primeiros sistemas de medidas, que permitiam a todos compreender determinados conceitos, mesmo que não tivessem lidado com eles anteriormente.

Cada civilização da Antigüidade tinha o seu próprio sistema de medidas. No Egito, país onde foi inventada a balança cerca de 5 mil anos antes de Cristo, as medições eram consideradas de suma importância. Sustentavam o burocrático Estado egípcio. “Como a economia egípcia era baseada na agricultura e na cobrança de impostos, o uso de medidas padronizadas tornou-se fundamental”, diz o egiptólogo Antonio Brancaglion, do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Os escribas, que eram a base da administração e da burocracia do Egito antigo, controlavam as aferições, o uso correto das medidas e os registros dos produtos agrícolas.

As primeiras medidas egípcias, como as de outros povos da época, eram inspiradas no corpo humano. A unidade mais usada era o côvado, a distância do cotovelo até a ponta do dedo médio. O padrão real correspondia a 7 palmos ou 28 dedos, o que equivaleria hoje a 52,3 centímetros. Para medir áreas de plantações, os egípcios utilizavam cordas com nós – o que acabou originando uma atividade curiosa: a dos esticadores de corda. Para comparações de massa, eram usados pesinhos com formatos de animais, como leões e touros. Muitos deles foram encontrados em tumbas e pirâmides. Os egípcios viam os instrumentos de medida como artefatos muito valiosos. “Réguas e balanças eram sepultadas junto com seus proprietários”, diz Antonio. “Existiram casos em que as réguas eram folheadas a ouro e dadas de presente pelo faraó ao dignitário.”

Na Roma antiga, as medidas oficiais também eram valorizadas e respeitadas. No centro de todas as cidades do Império Romano, funcionava uma espécie de escritório onde havia uma bancada com os principais padrões, tanto de comprimento quanto de volume. “Os romanos iam até lá para conferir as medidas de suas ânforas e réguas”, diz o historiador e arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Obviamente, devido às limitações da época, tais padrões não eram tão precisos.” O sistema romano de medidas, bastante influenciado pelo grego (a Grécia foi conquistada em 146 a.C.), era composto de unidades como polegada, pé, onça e libra. Os nomes serviram de inspiração para as medidas usadas ainda hoje no sistema imperial britânico. Os valores, no entanto, não são os mesmos.

A primeira tentativa de unificação das medidas veio com o imperador francês Carlos Magno (768-814), no século 8. Ele criou, por exemplo, um conjunto de pesos chamado de “pilha de Carlos Magno” e instituiu a libra esterlina (equivalente hoje a 350 gramas). Mas essas unidades não perduraram. Durante a Idade Média, cada senhor feudal manteve, dentro das terras que lhe pertenciam, os seus próprios padrões de medida. Era uma forma de dominação. “Quem controlava as medidas detinha o poder”, diz Giorgio Moscati. As medições se tornaram arbitrárias e, não raro, a população era explorada pelos abusos fraudulentos de mercadores e senhores feudais, que usavam padrões pequenos para a venda de mercadorias e grandes para a compra dos produtos agrícolas.

O uso de diferentes padrões de medidas entre as nações e mesmo dentro de um único país vigorou durante toda a Idade Moderna. O absolutismo político reinante na Europa não dava espaço para a revolucionária idéia de padronizar as medições. Para você ter uma idéia, uma das unidades de comprimento mais comuns na França daquela época era o pied-de-roi (“pé-de-rei”), que hoje equivaleria a 32,5 centímetros. O pied-de-roi oficial de Paris valia 1,1 da medida usada em Bordeaux e 0,9 daquela que se utilizava na região de Lorraine. Isso significa que a mesma medida – uma corda de 5 pés-de-rei, por exemplo – tinha comprimentos distintos de acordo com a região do país. Tomando o pied-de-roi de Paris como referência, em Bordeaux a corda teria 4,54 pés-de-rei. Em Lorraine, chegaria a 5,55.

Essa diversidade de medidas obstruía a comunicação e o comércio e atrapalhava a administração racional do Estado. Além disso, tais medidas raramente eram precisas. “Até o fim do século 18, a precisão não era essencial porque a prática capitalista ainda não estava difundida no mundo”, diz o historiador da ciência Shozo Motoyama, da USP. “A precisão adquire importância quando se passa a considerar o lucro e o ganho que cada um pode obter numa transação econômica.” A decisão de criar um modelo de unidades que fosse universal, prático e exato finalmente se concretizou com a Revolução Francesa, em 1789. O rompimento com as tradições feudais e absolutistas abriu caminho para idéias inovadoras.

Sob os preceitos do Iluminismo, movimento ideológico que considerava a razão como o pilar do desenvolvimento humano, a Academia Francesa de Ciências assumiu a incumbência de criar medições padronizadas (foi também um modo de os cientistas salvarem a pele diante dos revolucionários, que os viam como partidários do rei). O plano era elaborar um sistema de unidades baseado num padrão da natureza, imutável e indiscutível. Como a natureza não pertence a ninguém, tal padrão poderia ser aceito por todas as nações, inclusive a rival Inglaterra, e se tornaria um sistema universal.

A Academia convencionou que a unidade-padrão de comprimento seria a décima milionésima parte da distância entre o Pólo Norte e o Equador. Para obtê-la, era necessário medir um arco — ou seja, um segmento — de um meridiano terrestre. Assim, por extrapolações astronômicas, era possível calcular o comprimento total do meridiano. Uma equipe de cientistas, liderada pelos astrônomos Jean-Baptiste Delambre (1749-1822) e Pierre Méchain (1744-1804), se dedicou, durante sete anos, à missão, iniciada em 1792. O resultado da aventura foi a definição do metro – um padrão constante e universal, com múltiplos e submúltiplos, cujo primeiro protótipo foi uma barra de platina regular.

“O sistema métrico é um modelo muito inteligente porque se baseia na linguagem decimal — uma linguagem prática e lógica”, afirma Ubiratan D’Ambrosio.

Os padrões de massa e volume foram calculados a partir do metro, seguindo o mesmo princípio. O grama foi definido como a massa de 1 decímetro cúbico de água pura a 4ºC, temperatura em que atinge a maior densidade.

O litro passou a equivaler ao volume de um cubo com 10 centímetros de lado (ou seja, 1 decímetro cúbico). Foi uma mudança e tanto. O governo francês investiu em campanhas educativas para divulgar as novas medidas. Gravuras ensinavam a conversão das unidades e o uso de cada uma delas: em vez da pinta, o litro; no lugar da libra, o grama; para substituir a alna, o metro; e assim por diante.

Apesar da revolução no pensamento e na concepção de mundo, um fator não mudou: as medidas continuaram a ser usadas como instrumento de poder. “O conceito de medida universal pertencia àqueles que detinham o poder imperial ou que estavam sob a influência do império”, diz Ubiratan. Na época, dois impérios rivalizavam em equilíbrio de poder: o francês, sob o comando de Napoleão Bonaparte (1769-1821), e o inglês. Por isso, a França e todos sob sua influência direta ou indireta adotaram o sistema métrico decimal – como o Brasil, que, em 1862, por decreto de dom Pedro II, abandonou as medidas de varas, braças, léguas e quintais para aderir ao metro. A Inglaterra e os países do Commonwealth (comunidade de língua inglesa) mantiveram o sistema imperial britânico, com mais de oito séculos de existência.

Hoje, o sistema internacional de unidades estabelece que o metro é a medida oficialmente usada nas atividades científicas, econômicas e industriais. A definição dessa grandeza foi reformulada ao longo das diversas Conferências Gerais de Pesos e Medidas, reuniões periódicas entre representantes de vários países para deliberar a respeito dos padrões e seu uso corrente. Segundo a definição atual, “o metro equivale a 299 792 458 avos da distância percorrida pela luz no vácuo durante um segundo”.

Inglaterra, Estados Unidos e outros adeptos do sistema britânico reconheceram a importância de adotar o sistema métrico decimal. No entanto, nesses países ainda há resistência em usar as unidades internacionais de comprimento, massa e volume. “Trata-se de uma transição lenta, pois é difícil convencer as pessoas, acostumadas com um determinado sistema de medida, a mudarem totalmente seus hábitos”, diz Giorgio Moscati. No ano passado [2002], um quitandeiro inglês da cidade de Sunderland, no extremo norte da Inglaterra, foi multado por continuar vendendo frutas usando a libra, como medida de peso, em vez do quilo. Ele contrariou as regras da União Européia, segundo as quais todos os países membros devem utilizar o sistema métrico nas transações comerciais.

A coexistência de dois sistemas de medida também causou confusão, dessa vez nos Estados Unidos. Em 1999, a Nasa perdeu a sonda Mars Climate Orbiter por causa de informações conflitantes dos controladores de vôo. A nave foi abastecida com dados do sistema métrico decimal e também do sistema imperial britânico e os computadores não foram capazes de identificar as diferenças entre os valores transmitidos.

No Brasil, o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro) é o órgão responsável pela manutenção dos padrões do sistema internacional de unidades. Calibra os instrumentos de precisão usados pela indústria, pelo comércio e por centros de pesquisa, além de cuidar da regulamentação das embalagens e produtos pré-medidos, como cremes dentais, sabonetes, bebidas etc. “No Brasil, é ilegal vender produtos em unidades que não pertençam ao sistema internacional”, diz Giorgio Moscati. “Mesmo os produtos importados e embalados na origem, como perfumes, licores e enlatados, devem ter uma etiqueta em português com a medida correspondente.”

Ao Inmetro estão ligados os Institutos de Pesos e Medidas (Ipem), órgãos estaduais que fiscalizam o cumprimento da legislação sobre metrologia. Balanças fraudadas, bombas de gasolina alteradas e outros truques favorecem a concorrência desleal e prejudicam o consumidor. O impacto das imprecisões, em larga escala, é bastante significativo. “Já comprovamos que 1 centímetro a menos no comprimento e na largura do bloco cerâmico representa 8% de custo a mais na obra”, afirma Adejayr Cyro Trigo, superintendente do Ipem de São Paulo.

A preocupação com a exatidão das medidas é antiga. O livro bíblico dos Provérbios diz:

“Ter dois pesos e duas medidas é objeto de abominação para o Senhor”.

E para a sociedade também. Afinal, todo o progresso científico e tecnológico está diretamente atrelado ao uso adequado das medidas.

Para saber mais

Na internet

www.instrutemp.com.br

www.facebook.com.br/instrutemp.instrumentosdemedicao

www.bipm.org www.inmetro.gov.br www.ipem.sp.gov.br

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